Ouvi falar pela primeira vez de Diablo na adolescência. A descrição que meu colega de escola fez do jogo o tornava um tanto exótico para alguém que mal tinha saído dos consoles de 16 bits. Jogos para computadores só fariam parte do meu cotidiano alguns anos depois. E mesmo assim, a maior parte do meu tempo seria dedicada a The Sims, Sim City, Age of Empires e um pouco depois, Fallout.
Diablo, de fato, só cruzou meu caminho em 2012, com o lançamento do terceiro jogo da série. E eu fiquei maluco.
O jogo era incrivelmente viciante. A matança de hordas de demônios e a busca por equipamentos mais fortes e raros me fizeram ficar por dezenas de horas na frente do computador. Posteriormente, fui atrás do segundo jogo e aprendi um pouco mais da história infernal. Mas foi com o porte do terceiro jogo para consoles que eu me afundei completamente no mundo de Santuário.
Então, depois de terminar o modo principal do terceiro jogo, tal qual um viciado em busca de sua droga, passei a procurar mais da história de Santuário em outros lugares. Entrei em fóruns, destrinchei o site oficial, fui atrás de guias e li uma quantidade inacreditável de fanfics. Até que cheguei aos livros.
Diablo: A Ordem
Aos que, porventura, lerão o livro, tenha em mente que ele não é jogo. Pode ser uma constatação óbvia, mas é importante fazê-la. Diferente dos videogames, em que a ação de matar demônios segue desenfreada do início ao fim, com poucas passagens pelos centros seguros espalhados por Santuário, no livro, o tempo é dedicado a construir os pormenores do mundo. E é aí que se encontra a sua força.
Quem jogou Diablo, conhece a ambientação suja, escura e desgraçada do jogo. Cavernas asquerosas, masmorras ensanguentadas, templos profanados, florestas mortas e desertos demoníacos. No livro, as descrições dos locais remetem ao jogo e o expande. E por não ter o ritmo frenético do jogo, podemos apreciar mais dos detalhes que compõem o mundo. Ainda que, paradoxalmente, sem imagens.
“As duas colunas projetavam sombras mais densas, como linhas negras desenhadas na poeira. Além das sombras, o véu pouco a pouco se erguia, e as ruínas do repositório secreto pairavam feito montanhas ao redor deles, aparecendo subitamente por entre a névoa. Pedras quebradas se projetavam da areia, polidas pelo vento em certos pontos. Antigas runas entalhadas cobriam os blocos maiores, sinal de que se encontravam em um local de grande poder dos Vizjerei.”
Construir mentalmente as passagens do livro com imagens do jogo é um exercício fácil em A Ordem. As passagens por cenários como Astra, Tristam e Caldeum são bem construídas. Podemos sentir de forma mais cadenciada e tranquila o dia a dia dos moradores desses locais e o impacto gradual das trevas sobre todos os aspectos da vida dessas pessoas. Esse lado cotidiano, apenas pincelada no jogo, dá a tônica na narrativa do livro e é, repito, seu grande diferencial.
Para além dos ambientes
Claro, a força dos jogos não está apenas no mundo escuro e atormentado de Santuário. Os personagens que dão vida a esse mundo também fazem diferença. Aos jogadores, o impacto de iniciar o livro com a infância de Deckard Cain mostra que A Ordem veio para deixar ainda mais fascinante a história desse e dos demais personagens da trama. Conhecer as origens do velho sábio Cain, o último dos Horadrim, nos faz entender um pouco melhor as suas atitudes, virtudes e temores.

Cercado pela loucura desde criança, sua mãe lhe infligia o peso ainda não entendido de ser o último de uma linhagem especial. Neste ponto, podemos traçar um paralelo interessante com outra grande personagem da série: Léa. Leal ao seu tio Deckard, conhecemos sua origem e a infância difícil com sua ‘mãe’ atormentada pelo peso do jugo demoníaco que traz consigo desde que o mal desestabilizou Tristam.
“Seu destino permanecia não cumprido. Tantos tinham morrido porque ele se recusara a escutar, porque ele ignorara os avisos da mãe e os livros que tinham ficado juntando poeira enquanto ele fingia perseguir objetivos intelectuais. Ele não tinha acreditado nos demônios, mas a hora deles chegara mesmo assim. O peso da culpa o estava esmagando.”
Conhecer o início do relacionamento desses dois, torna, olhando em retrospectiva, mais emotivos certos acontecimentos do jogo. O velho sábio, que teve uma infância rebelde, que demorou a aceitar seu destino, e a criança desamparada que encontra nesse sábio o único fragmento de família. A força dessa união fica mais palatável com as passagens descritas em A Ordem.
Monges x Demônios
Certamente a história não se limita apenas a Deckard Cain e Léa. Não há como ser uma obra baseada em Diablo sem a presença de diabos, capirotos, demônios, coisas ruins, capetas, satanás, males, mochilas de criança, belzebus e tinhosos. O antagonista em A Ordem é Belial e seus asseclas. Obcecado com a busca da destruição de Santuário, seu maior erro foi menosprezar a força de um velho e uma criança.

Outros personagens permeiam a história. Alguns são conhecidos dos jogos, a quem são dadas algumas pinceladas de profundidade. Destaque para Leoric, Aidan, Albrecht, Lázarus e a trama de traição, vingança, busca por poder e morte em Tristram. Aliás, as tramas que se passam em Tristram e seus desdobramentos são as mais interessantes, sobretudo pela ligação direta com o jogo. A cidade é o ponto em comum para a origem de muitas das tramas narradas na história. É em Tristram, por exemplo, que os acontecimentos que atormentam a ‘mãe’ de Léa, Gillian, e sua relação com Cain se passam.
“As profundezas das catacumbas estão tomadas por legiões de demônios, dos menores aos mais poderosos. Lázarus mandou muita gente para a morte. Você encontrará… pessoas que você conheceu e amou… ressuscitadas e transformadas de maneiras grotescas. Talvez comam carne humana, conspurquem os corpos dos que cruzarem seu caminho. Seu pai pode estar entre eles.”
O destaque, porém, além de Cain e Léa, fica com o monge Mikulov. Monge da cidade de Ivgorod, desafia a autoridade de sua irmandade para partir em busca de Cain. Ele, assim como o sábio, sabe que o mal ronda e está prestes a cumprir seu objetivo. Ao encontrar a dupla, o monge os segue à distância, os protegendo até que o momento adequado para a sua apresentação chegue. Mikulov é o responsável por cenas de ação bem estilosas, as poucas presentes no livro.
Considerações
Diablo: A Ordem é um bom livro. Apesar de não ser necessário o conhecimento do jogo para a sua leitura, com uma história que se fecha em si mesma, creio que seja muito recomendado estar a par do universo que ronda Diablo para sua adequada apreciação. É um livro para aprofundamento dos personagens, reforçando seus passados e servindo como um prelúdio para o terceiro jogo da série (o livro se encerra anos antes dos acontecimentos de Diablo 3).
Diablo: A Ordem
Autor: Nate Kenyon
Tradutores: Elton Mesquita, Rodrigo Santos e Edmo Suassuna
Editora: Galera Record